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Ética Pública: uma prática republicana
por Marília Muricy
Fonte: Bahia Notícias
publicado:
07/08/2012 14h38,
última modificação:
23/04/2015 11h47
Não faz muito tempo, costumávamos separar, no nosso imaginário político, o “joio do trigo”. Acreditávamos, com isso, vencer os efeitos degenerativos da contaminação entre o público e o privado que marca a nossa história, herdeira de um triste passado colonial. Era tempo de otimismo, pois ficara para trás a ditadura e acreditava-se que estavam exorcizados seus demônios.
Tempos de esperança, em que não contávamos com a capacidade que possuem as nossas elites, por conta de nossa inércia crítica, de engendrar, por cima de paradoxos que não superamos, novos discursos e falsos argumentos, para nos fazer crer que nosso futuro político defronta, apenas, duas alternativas: a primeira, reativar um passado de corrupção fora de controle, desrespeito a cidadania, e aos direitos humanos, acordos espúrios financiados pelo dinheiro público, prepotência sem limites, priorização dos interesses contrários à grande maioria populacional desse país; a segunda, caminhar sem rumo pelo terreno da “meia verdade”, da ética do “mais ou menos”, de um destino institucional do “afinal, se não for assim, não dá”. A pergunta é simples: estamos diante de uma fatalidade histórica ou de uma mentira de que podemos nos livrar?
Mencionei, atrás, paradoxos que afetam o discernimento político. Que paradoxos? O maior deles, para nós, os brasileiros, é o fato de termos sido levados, de atropelo em atropelo, no trânsito para esse novo tempo em que o lugar do poder se separa do campo em que ocorrem as grandes decisões políticas, sem que se tivessem preparado, previamente, nossas instituições. Em outras palavras: o que, em outros lugares da cena política internacional, se apresenta, agora, como crise das ideologias e turbulência do mercado financeiro, para o povo do Brasil, concluído o ciclo de derrubada da ditadura, o cenário mais se parece com imagens saídas de uma curiosa ficção... Na verdade, é como se tivéssemos sido arrastados de um momento em que a nação exercia um papel destacado na tomada das grandes decisões para o redemoinho da política econômica internacional, antes que pudéssemos cuidar de estruturar instituições políticas fortes. Parecemos órfãos de uma época de que não chegamos a nos apropriar.
De algum modo, a nossa vida política, protagonizada por uma estrutura partidária pífia, ainda se utiliza, nos segmentos em que se tem por importante utilizar argumento de legitimação, tão somente de uma retórica de defesa do princípio da igualdade e da defesa de programas de inclusão social, contra a qual, hoje, na falência do capitalismo predatório, ninguém se atreve a, publicamente, contrapor. Não se abre o espaço público para introduzir, na agenda, uma “cultura da decência”, discutindo, por exemplo, a experiência de outras nações, em que o exercício de cargos público é motivo para austeridade no modo de vida e não ocasião para uso de “mordomias”. Por isso, salvo na memória dos mais insistentes, que ainda se ruborizam diante de fotos em jornais, escândalos sucessivos, promiscuidade entre os poderes, não há razão para “afrontar” o projeto de “governabilidade” de um partido de cujo esforço resultou (e disso não tenho dúvida) uma política de combate à desigualdade sem precedente, na minha memória emocional. Mas a hora do “beija mão”, nas democracias que se prezam, não perdura além do tempo tolerável.
Cumpridos os rituais da celebração, é de dar espaço à voz dos independentes, efetivamente interessados na consolidação de avanços e no futuro da República. Caso contrário, estaremos predestinados a viver sob o domínio dos áulicos e do fisiologismo indecoroso que cerca os poderosos. Alias, quanto a estes, é bom que se acautelem contra os “vendedores de votos e lealdades”. Pouco a pouco, a consciência do eleitor, mesmo que ainda sufocada pela falta de financiamento público de campanha, vai exigindo novos padrões de referência para garantir dignidade a sua escolha. Em outras palavras, o voto de opinião”, cada vez é mais expressivo, na medida em que aumentam as políticas de inclusão, produzidas pelo governo, que continua (mais um paradoxo?) a se valer de bolorentas estratégias de captação de votos. Por outro lado, a “dança dos partidos” desorienta o cidadão, privando-o de referências morais, com o que se fortalece a tendência ao “o que é meu é meu, o que é público é de ninguém”, doença que, nascida na Colônia, ainda hoje resiste à cura. Termos tanto tempo convivido com os donos do poder, de que nos falou R. Faoro, acostumou-nos ao lugar dos servos que nem sequer a seus próprios travesseiros ousam levar a crítica que, mal se insinua na consciência, já é engolida pela descrença, quando não sufocada pelo temor mercenário. E o “salve-se quem puder” explode no corporativismo explícito ou no despudorado clientelismo.
Vem daí, o segundo paradoxo. Afinal, Deus e Diabo, como lembra Saramago, às vezes dialogam... Hobbes, maldito, por seu Leviatã por tantas gerações libertárias (desinformação ou preconceito, não importa agora) em comentário de Bobbio, recupera, por sobre o seu elogio do Estado, como guardião da paz, o sentido ético das ações do soberano, que atua como limite de suas ações. O faz, é verdade, por invocação das leis naturais. Mas não seriam as leis naturais, invocadas por um “absolutista” de séculos atrás, traduzíveis, no caminho percorrido de lá para cá,pelas exigências de lealdade e dignidade que a democracia, a duras penas, construiu? Tem-se falado muito em ética pública no Brasil que não raro é invocado com louvor, em encontros internacionais, particularmente por força das ações da Controladoria Geral da União. Estruturas institucionais outras, como a Comissão de Ética Pública, também tem sido depositárias das esperanças da cidadania no fortalecimento das instituições...
Mas não há qualquer preocupação com uma política de Estado que deixe claro, para uma população ainda insciente da diferença dentre Estado e governo, que é a garantia do primeiro a base de sua segurança e dignidade. Do mais, cabe- lhe dar conta. Não é tarefa fácil. Felizmente, apesar das muitas contradições, já dispomos de instrumentos como a lei de Acesso à Informação, que tornam possível ao cidadão distinguir os que servem ao interesse público dos que se habituaram a extrair, dos cargos, mordomias e ocasião para traficar influência. Mas de nada valerá a informação se não houver indignação. Tamanha é, no Brasil, a promiscuidade entre o público e o privado que chega a ser repugnante a mistura de indiferença e condescendência com que alguns avaliam o a prática da corrupção, quando não chegam a admitir, expressamente, que “uma certa dose” de facilitações nos negócios públicos é indispensável à vida política. E fica cada vez mais difícil reler, sem ruborizar, os autores, clássicos e contemporâneos, da ética e da democracia, a exemplo de Aristóteles para quem o exercício do poder revela o homem ou Hannah Arendt, que insiste em afirmar a dignidade da política contra a tendência, já em vigor em seu tempo, de associar o discurso político à mentira e ao segredo.
E se no mundo dos leigos as coisas acontecem assim, pior ainda ocorre com o “discurso erudito” que, mal apropriando-se da distinção weberiana entre a ética das convicções e a resultados, teima em considerar o campo político como estranho às questões da ética. Ora: já a polis grega sabia que não era assim. E mesmo agora, com as transformações produzidas pela complexidade da vida pós-moderna sobre as relações entre o poder e a ética, o sentido moral das ações do governante continua a atuar como fundamento de legitimidade do poder. Lamentavelmente, a nossa prática está longe de ajustar-se ao discurso, não raramente professado por personagens que, não fosse a nossa curta memória e a notável fragilidade de nossas instituições, estariam vivendo no ostracismo ou contribuindo para aumentar a população carcerária. Mas o pior é o uso perverso de argumentos supostamente jurídicos para tentar elidir a responsabilidade moral, como se a introdução do princípio da moralidade no texto da Constituição carecesse de consequências práticas. É claro que a ninguém, minimamente informado na área do direito, ocorreria pensar que a inovação constitucional implica em equiparar as sanções éticas e as jurídicas, particularmente quanto aos procedimentos que cercam sua aplicação; procedimentos que se distinguem, não para esvaziar de sentido as sanções éticas, boicotando-lhes a aplicação, mas para, identificando, nas sanções jurídicas maior gravidade, cercar de maior cuidado sua imposição. O alcance do princípio da moralidade, que a prática dos nossos tribunais parece não haver ainda reconhecido, é a responsabilização dos agentes públicos, não só os que afundam no lodo do conflito de interesses, mas os que se recusam a cumprir as exigências da transparência dos assuntos públicos,tal como, segundo notícia divulgada na Folha de São Paulo, vem ocorrendo, sob pretextos á primeira vista inconvincentes no que toca à divulgação de vencimentos, no Executivo e Legislativo; anos a fio de escandalosa ultrapassagem do teto constitucional e, agora, a resistência em abrir a “caixa preta”...
Vivemos um momento esquisito, divididos entre a esperança e o dissabor. Mas, na democracia, a confiança, sem a crítica, se confunde com o servilismo. E este, é inimigo da mudança. Corremos risco, é claro, de que, como se costuma fazer para calar os inseguros, sejamos acusados de pessimismo crônico. Ou, pior ainda,de termos saído da luta para o ressentimento azedo e inconsequente... Mas aí, com certeza, é alta a probabilidade de que, nesse caso, o joio não se confunda com o trigo, pois os que apostam na ética não costumam trocar a cor das lentes conforme a roupa do dia.